Infância e filosofia... -
Vilmar A. Pereira e Jaqueline C. Eichenberger
216
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.206-228
maio
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ago
. 2014.
Disponível em <
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R
ené
D
escartes
:
infância
e
racionalidade
E assim ainda pensei que, como todos nós fomos
crianças antes de sermos homens, e como nos foi preciso
por muito tempo sermos governados por nossos apetites
e nossos preceptores, que eram amiúde contrários uns
aos outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre
nos aconselhassem o melhor, é quase impossível que
nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como
seriam se tivéssemos o uso inteiro de nossa razão desde
o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão
por ela (DESCARTES, 1987, p. 18).
No entender de René Descartes (1596-1650), a queda da
condição humana ocorre nos primeiros anos de nossa existência;
logo, é o fato de se nascer criança que condena a alma ao primeiro
aprisionamento. Tentando entender as razões que justificam esse
modo de pensar, Matos (1999) faz um excelente diagnóstico, a partir
de algumas analogias entre as abordagens platônica e cartesiana no
que tange à questão do corpo e da alma. Ambas priorizam a alma
e atribuem ao corpo uma espécie de menosprezo. Segundo Matos
(1999), a diferença básica entre as duas abordagens consiste no fato
de que a primeira, ao tematizar a união do corpo à alma, entende
ser o corpo quem aprisiona a alma. Na abordagem cartesiana, essa
união ocorre, conforme a natureza, especificamente nos primeiros
anos de vida. Observa-se que tanto em uma como na outra “há como
que um escândalo na condição humana: aos olhos de Platão, que o
homem esteja no mundo; aos de Descartes, que o homem comece
por ser criança” (MATOS, 1999, p. 38). Para Matos (1999) em
Descartes, a infância não traz uma contribuição significativa para o
desenvolvimento da subjetividade e, consequentemente, da afirmação
do homem adulto; ao invés disso, observa-se que a infância é um
estágio puramente histórico que, ao que parece, recalca a razão.
Conforme Matos (1999, p. 38) “Pela filosofia a razão deve rechaçar
esse usurpador e liberar o homem de sua história”.
Na compreensão de Matos (1999), a filosofia ocupa uma função
de oposição à história e consequentemente, à infância. Isso gera uma
espécie de antagonismo em que a história significa essa persistência
do infantil no adulto, enquanto a filosofia, um desprendimento